de ciganos, violência e… animação

arte cigana, fonte ocmk.blogspot.com

Arte Cigana, fonte: Centro Nacional de Arte Cigana (ocmk.blogspot.com)

Muita gente deve ter ouvido falar da grande vaia que Madonna levou recentemente em Bucareste, capital da Romênia, durante um show, ao condenar o preconceito contra os ciganos e homossexuais.

É impossível saber qual das duas minorias citadas teria detonado a parte maior da vaia. Mas é da questão dos cigányok (“tsigáánhok”, plural de cigány) que me interessa tratar aqui; ou do povo roma, pra usar o termo politicamente correto (romani, em português, nome também da língua falada por eles, na verdade uma imensa gama de dialetos em torno de uma origem comum na Índia).

A Hungria, que é vizinha oestana da Romênia, tem sido abalada nos últimos meses por uma série de crimes contra ciganos. No começo de agosto, uma mulher chamada Balogh Mária foi a sétima vítima fatal em um ano. Sua filha Katrin, de 13 anos, recebeu vários tiros também, mas sobreviveu.

arte de Balogh Balázs András

Arte de Balogh Balázs András (ocmk.blogspot.com)

Outros ataques violentos, embora sem morte, vêm acontecendo com frequência, geralmente em pequenas cidades do interior (a imprensa fala em cerca de cinquenta nos últimos doze meses). A reação são mobilizações e protestos públicos dos ciganos e das pessoas em geral que lutam contra o ódio inter-étnico , além das declarações formais de praxe de políticos e autoridades policiais.

A Europa central como um todo, e a bacia dos Cárpatos em particular, onde a Hungria se encontra aninhada, é um caldeirão onde etnias diferentes convivem e/ou se atritam, cooperam e/ou se odeiam há séculos. Os magiares estão envolvidos nessa arenga há mais de mil anos, desde que chegaram ali vindos do leste (escapando de outras brigas por lá) na segunda metade do século 9.

Carnaval, Balázs János

Balázs János, Carnaval (ocmk.blogspot.com)

Eslovacos, romenos, sérvios, croatas, austríacos, bósnios, checos, além dos magiares, claro, são algumas dessas “torcidas organizadas” nacionais que ao longo da história de vez em quando têm partido pra a ignorância umas contra as outras no gigantesco Maracanã que são os cárpatos. E povos “supranacionais”, como os judeus e os ciganos têm sofrido muitas vezes no meio do fogo cruzado, ou sido usados como bodes expiatórios em momentos de grande insatisfação popular, geralmente ligada ao bolso, à falta de pénz (=dinheiro, pron. “pêênz”).

A crise financeira internacional recente deixou Magyarország (a Hungria) na “beira do precipício”, como me disse uma jovem escritora e jornalista num email de três ou quatro meses atrás. As taxas de crescimento lá já vinham medíocres há mais de uma década, mas a crise fez a coisa entrar em parafuso de vez, deixando muita gente em situação de desespero. Ela também dizia que o clima ruim entre magiares e ciganos estava chegando a um ponto insuportável.

Nesse caldo de cultura de frustração, não é de surpreender que exploda a tensão latente que há entre o magyar que se vê como “branco” e os ciganos, povo de pele morena. Tensão latente porque embora boa parte dos cidadãos de origem cigana esteja bem integrada à vida econômica, acadêmica, cultural e artística da Hungria, uma grande massa deles ainda patina na pobreza, e tem dificuldade de sair dela por vários motivos históricos e culturais, que provavelmente incluem falta de oportunidades de educação, baixa auto-estima, ética e valores culturais arraigados herdados que não encorajam a superação social, além do forte preconceito de grande parte dos que vivem em torno, que é causa, mas também consequência dessa complicada realidade.

Kupcsik Adrián, autorretrato

Kupcsik Adrián, autorretrato

O fato é que há proporcionalmente bem mais desempregados, alcoólatras, e foras-da-lei em geral (e, consequentemente, mais gente em cana) entre os roma do que entre os outros húngaros.

Além disso, eles fazem mais zoada, são mais coloridos e extravagantes do que o magiar médio, que costuma ser muito discreto em público. Os ciganos adoram festa e música alta, muitos são músicos talentosíssimos − boa parte das estrelas da música pop húngara é de origem romani −, e sempre produziram grandes violonistas e violinistas.
Aliás, um termo popular meio “codificado” pra se referir a um cigano em magiar é hegedűs (= violinista, pron. “héguedüüsh”, com biquinho, de hegedű = violino). Brahms, Liszt, Bartók e outros sabiam muito bem que a música erudita centro-européia deve muito à contribuição original e vibrante dos ciganos.

A grande poesia e literatura magiares também trataram dos ciganos, reconhecendo que, embora diferentes, eles são uma parte integral e secular da vida dos Cárpatos e da própria tradição cultural magiar no seu sentido mais amplo e rico.

Budapeste Multicor, Festival das Etnias

Cartaz do "Budapeste Multicor - Festival das Etnias", 2009

Mas seja como for, a verdade é que os cigányok são facilmente identificáveis como o “outro”, o diferente, e, nas horas de crise, como um “inimigo interno”, uma “mancha” a ser lavada para o bem da nacionalidade. Isso se complica ainda mais sabendo-se do peso político que o nazifascismo teve na história da Hungria no século 20. Certamente ficaram marcas. Há um forte movimento subterrâneo (e às vezes nem tanto) de skinheads e outros adeptos da “supremacia racial” branca em atividade na Hungria − como na Europa em geral, aliás. É do meio desses que saem, é de se suspeitar, os autores dos crimes recentes contra os ciganos. Vale relembrar que os ciganos também entraram na equação macabra da “solução final” hitlerista na Segunda Guerra Mundial.

cigány kép balzslajoskosrfonInfelizmente esses agentes truculentos terminam contando também com o silêncio e até o apoio moral de parte da população magiar, possivelmente mais pobremente escolarizada e mais oprimida economicamente, que tende a simplificar a realidade e se deixar seduzir pelos arautos da limpeza étnica como solução para os problemas do magyar.

Pra terminar, melhor nos voltarmos pra a Arte e suas estratégias pra digerir conflitos. Ano passado em Budapeste vi um filme de animação muito bem feito e divertido chamado Nyólcker (“nhôôltsker”), cujo universo são as tensões e arranca-rabos entre duas patotas, uma de “brancos”, outra de ciganos, do submundo do Nyolcadik Kerület (Oitavo Distrito, daí a abreviação Nyólc+ker, nyolc = oito) de Budapeste, mas já entram também na roda outros elementos da confusão urbana atual, como os chineses (donos de bufês de comida rápida na cidade) e os árabes.

Nyólcker cdBoritóA trama mistura muita briga, vagabundos e vagabundas de ambos os lados, policiais corruptos, amor “romeu-e-julieta” do garoto rapper-cigano-herói pela filha do cafetão branco, descoberta de petróleo no subsolo de Budapeste, riqueza que faz todos se aproximarem, complô da CIA pra acabar com a festa, que está prejudicando as grandes petroleiras americanas, até uma ordem de Bush pra detonar Budapeste com uma bomba atômica, que termina sendo jogada em Bucareste, Romênia, por engano, confirmando um erro-clichê dos estrangeiros sobre a região.

Nyólcker ganhou merecidamente uma porção de prêmios importantes de animação pelo mundo afora. Quem quiser pode conferir a página do filme, que tem uma versão mais breve em inglês, aqui. Como dá pra perceber, a técnica de animação partiu de pessoas reais, cujos rostos foram foram fotografados em vários ângulos e depois trabalhadas na animação com corpos e movimentos inventados.

Seguem alguns trailers e clips do filme: jó szorakozást!! (divirtam-se)

1. Párbaj = o duelo

2. Csajok = as gatas

3. Julika az erkélyen = Julinha na varanda (cena do balcão!)

12 Comentários

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12 Respostas para “de ciganos, violência e… animação

  1. O comentário que deixo aqui não justifica a violência contra os roma; porém a raiva dos magyares vem de uma pensão que a minoria recebe do governo, se forem famílias com mais de duas crianças. As famílias roma são geralmente numerosas e os húngaros (“brancos”) se recentem dessa “regalia assistencial” dada pelo governo aos roma, sobretudo em tempos de crise, como ocorre recentemente.

  2. Patricia

    Chico, outro dia vi um documentário curiosíssimo sobre ciganos (não lembro bem de que país, acho que da Romênia) que ficavam acusando uns aos outros de comerem carne de cachorro. A equipe dizia: “os Rumis (falavam assim) da cidade x disseram que vocês comem cachorro.” E estes: “não, são eles quem comem, e roubam nossos cães…” E foi assim o tempo todo, muito engraçado. No meio disso, acompanharam uma moça que havia feito curso de vendas e tentava achar emprego e ninguém dava por causa da origem.
    beijo

    • Bom dia, tb assisti esse programa, aliás um dos melhores que assisti ano passado. Gostaria muito de baixar esse documnetário, acredito ter visto na TV CULTURA. Deixo aqui meus parabéns pelo BLOG e aguardo alguma informação sobre o documentário caso você possua(nome, origem, etc).
      Sorte e sucesso, um abraço

      • Chico Moreira Guedes

        Bom dia, Conrado! obrigado pela visita e pelas palavras gentis.
        Não entendi direito a que comentário vc se refere. Nesse post eu me refiro a um filme de animação, que é ficção, portanto.
        Se for algum documentário sobre ciganos na Hungria eu também tenho interesse. Por favor confirme.
        abraço

  3. Erik

    I like the self portrait!

  4. Pingback: Turmix* cultural da Hungria de hoje « HungriaMania

  5. Guilherme

    Caro Chico,

    Excelente post!!! É difícil encontrar análises tão lúcidas de uma questão tão complexa como essa, geralmente tratada com superficialidade e preconceito. Parabens pelo blog!!! Eu também adquiri, como você, uma mania por coisas magiares, e este blog é realmente sensacional. Ügyes vagy!!! 🙂

    • Chico Moreira Guedes

      Köszönöm, Guilherme!
      Sua visita me fez reler este post, que já tem um tempo. Acho que não mudaria nada mesmo, e fico feliz que vc tenha achado legal.
      üdvözöl Chico

  6. Pingback: Para onde vai a Hungria? Fala Nádas Péter, escritor | HungriaMania

  7. Andrea Ribeiro

    O nome do filme/documentário é Zigeuner (Gypsies) de Stanislaw Mucha, 2008.

  8. GUIMAPÃES

    È VERDADE QUE OS HUGAROS EM PORTUGAL TEM UM COPORTAMENTO VIOLENTO ASSALTAM E MATAM, INVADEM RESIDENCIAS DE PESSOAS IDOSAS, ESTOU TREMENDO DE MÊDO É VERDADE?

    • Chico Moreira Guedes

      Não sei de onde pode ter saído essa história absurda. Nunca ouvi falar nisso. Acabo de voltar de Portugal e Espanha e lá também não ouvi falar de tal coisa.

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